sábado, 14 de setembro de 2013

Os Anciãos do Ódio




E de modo que é assim, caro senhor. Quando começámos éramos uns simples lojistas, uns vendiam trapos, outros eram talhantes, mas tínhamos dinheiro, capital, compreende. E lá fomos emprestando aos destravados dos duques, condes, barões e até à Coroa que nem miolos tinha para gerir este antro de parasitas e mais meia dúzia de feitorias a que chamavam império, capitaneadas por mulatos cheios de ódio, filhos de brancos piolhosos e de pretas de sanzala. Imagine. Nós, uns burguesitos miseráveis oriundos de Itália, França, da Alemanha, ou das barrigas peludas das criadas dos valetes deste covil a que chamam país. Nós que andávamos de jaqueta, gravata e botas de campónio, cujas mulheres bigodudas copiavam e mal as modas de Paris, éramos desprezados pelos pelintras dos nobres enquanto passávamos a vida a emprestar dinheiro àquele fantoche aqui mantido artificialmente pelos ingleses, a que esta gentalha sem rumo nem destino chamava de el-rei, depois de ter desbaratado numa guerra fratricida o pouco que o Junot cá deixou quando foi escorraçado pelo Wellington. É claro que ele não tinha como pagar a conta e deixou o trono à pateta da filha junto com as contas das guerras passadas. E lá fomos continuando a emprestar à coroa, que nunca teve como nos pagar. Pagava-nos o que podia e o que não podia em negociatas de obras públicas, rendas e outras fantasias fontistas até que nos fartámos desta palhaçada toda e entabulámos conversa com uns idiotas carbonários insuflados pelos escombros de todas as revoluções francesas, instigámos-lhes o orgulho nacional ferido de intelectuais de pastelaria contra o ultimato britânico a essa outra megalomania de jerico que foi o mapa-cor-de-rosa, que já se estava ver não ia dar em nada e era uma quimera de gente tonta sem miolos, crentes como só existem neste beco lodoso dos confins da Ibéria. Alguma vez os britânicos o iriam permitir. E de tal modo os carbonários fizeram uma merda de um trabalhinho tão mal feito ao contratar uns idiotas fanatizados que estes no fim acabaram mortos ainda antes de serem interrogados pelos sicários do João Franco e os verdadeiros cabecilhas nunca foram apanhados, veja bem o quão burra é esta gente. Aposto que se em vez de os terem morto, a guarda real os tivesse torturado, tinham confessado que a ideia do regicídio tinha sido das saloias mãezinhas, umas analfabetas andrajosas paridas de um penedo de granito. Lá tivemos de mandar o rei hereditário fazer as malas e colocar no lugar dele uns reis eleitos que nunca prestaram para mais nada senão para cortar fitas, os bovinos. Nessa altura já éramos banqueiros, tabaqueiros, donos da eletricidade e do gás, dos caminhos-de-ferro, da marinha mercante, dos grandes hotéis, das minas nas colónias de África e mais o diabo a sete. E lá íamos distraindo esta cambada com festas e beberetes enquanto a república bastarda nos ia prestando vassalagem dobrando-se para trás para nos ir satisfazendo os caprichos, enquanto os políticos da mesma se iam digladiando pelo poder deste covil de farrapentos e analfabetos. É claro que depois de tanto governo e desgoverno caído, de tanto desmando político, de tanta violência, de tanta divida pública a nós, donos das fábricas e do armamento, que financiámos a patética expedição da Grande Guerra, servida em bandeja de lama nas trincheiras de Verdun como carne de canhão para os hunos, enquanto por cá os finórios de cartola se espadeiravam uns aos outros pela frente e por detrás na assembleia nacional, nós lá fomos ficando fartos de tanto pagode, sorrindo aos políticos ao mesmo tempo que íamos untando as mãos e os paióis dos generais tiranetes deste serralho de derrotados e que lá acabaram com a palhaçada de uma vez por todas quando cravaram no poder o seminarista de Santa Comba, o tal que pôs a casa em ordem enquanto dava porrada na arraia-miúda, que depois de amansada trabalhava para nós a troco de quase nada e ainda agradecia em comícios pseudo-espontâneos ao salvador da pátria, paizinho, avozinho e tiozinho desta chusma de boçais. E nas horas de ócio ainda lhes vendíamos revistas à portuguesa, feiras, touradas e folclore trauliteiro e lá iam rindo a bandeiras despregadas aquelas bocas desdentadas das piadas veladas ao regímen que nós fingíamos que não percebíamos, e do toiro cheio de farpas no lombo, espelho deles mesmos, povo tão burro quanto atrasado, riam-se deles próprios e da miséria que lhes fomos dando em sopas de pão e toucinho. E diga-se em abono da verdade que a vida nunca nos correu tão bem nesses tempos de sol, praia e festas de arromba. Éramos então chamados de capitães da indústria. Pagou-nos o seminarista sempre atempadamente com o dinheiro que lhe emprestámos, para fazermos as obras públicas, para explorarmos como deve ser os minérios de África que depois fazíamos transportar nos nossos próprios barcos para serem transformados nas nossas fábricas e vendidos como sabonetes e bugigangas às madames da capital, café aos pseudo-intelectuais das arcadas do Terreiro do Paço e do Chiado, e ainda alimentávamos o vício aos pobres dando-lhes vinho e tabaco com fartura para se irem esquecendo da miséria que lhes impingimos a troco de uma casa portuguesa com certeza, no bairro da fábrica e descontada do ordenado, e mais umas estradas asfaltadas por onde circulavam os carros que não tinham, junto com mulas pulguentas picadas por miúdos surrentos e descalços mas muito honrados, meu caro amigo, porque não andavam a mendigar. E os empregos que restavam foram parar às fabriquetas obsoletas do condicionamento industrial, um pequeno preço a pagar para que nós nos pudéssemos cartelizar à vontade e desfrutar da boa-vida enquanto o seminarista se entretinha a contar os tostões e a fazer uma zurrapa lá para os lados da aldeia que o viu nascer, pobre diabo, enquanto vendia sardinhas em lata aos boches e se enchia e nos enchia de divisas estrangeiras à custa dos dentes dos hebreus que desapareciam da face da terra em velocidade terminal e nauseabunda, e ainda teve a lata de campónio manhoso ao negociar com os ianques, sempre burgessos, os despojos de uma guerra da qual não participou em troca de uma ilha meio adormecida lá para o meio do Atlântico e que serviu como assento para impedir o papão vermelho de conquistar o espaço livre que era a nova Europa ocidental, exemplo de democracia, a começar pela Ibéria e a acabar na mesma e deixando-nos em paz a governar este coio de indigentes, sempre a lamentarem-se do destino e da saudade, nem eles sabem bem de quê, os energúmenos. E andávamos todos bem até que o homem, veja você bem, cai de uma cadeira de lona abaixo, vá, e vai desta para melhor, imagine só. Entre o hospital e o catafalco, lá lhe arranjámos um delfim às pressas, saído das fileiras dos legionários, e serviu para ir apaziguando os ânimos já meio exaltados da escumalha esquerdista que andava pelas universidades e quartéis a papaguear discursos marxistas contra a guerra colonial e contra a situação e até queriam eleições, veja bem que catano. Até que uma cáfila de militares de baixa patente, que só sabiam lamentar-se quando viram as benesses escorrerem-lhes pelas mãos, e porque a guerra já ia longa, e porque emprenharam pelos ouvidos a propaganda soviética que lhes ia parar às mãos quando regavam de napalm as cubatas com os pretos lá dentro, e se chatearam, os coitadinhos, e pegaram em meia dúzia de chaimites ridículos e mais uma récua de boçais como eles, e mandaram o delfim para o diabo, ensinar direito aos brasucas que na altura andavam a ser desentortados pela bendita mão dos generais que invadiram o Planalto. Dessa é que não esperávamos, e foi um regabofe de comunas que espreguiçaram as gâmbias depois de tantos anos encolhidos a levarem porrada dos pides, aquilo é que foi dar ao dente, era manifestações para cá, distribuição de kalashnikoves para lá, reforma agrária já e nacionalizações para ontem. Cabrões, julgavam-se mais espertos que nós que já cá andávamos há mais de um século e éramos velhos como as árvores, e tínhamos manhas de raposa velha, éramos sabidos e matreiros. Quando os vermelhos começaram a lançar os boatos de que iam imolar os meninos do monóculo numa tourada do Campo Pequeno, alguém tentou dar a volta a isto, meu caro amigo, e aí é que a muralha de aço se pôs a ladrar nacionalize-se. Só que nessa altura já os bancos de jardim de Zurique, Genebra e do Rio de Janeiro estavam cheios de velhinhos portugueses centenários, antigos como as árvores que lhes davam sombra e matreiros como raposas, fomos ficando à espreita que o preque caísse de maduro e se voltassem de novo para nós, de boné na mão a rogar que tornássemos a mandar naquele covil de asnos mal-paridos. Claro que perdemos os bens ativos das empresas, mas o grosso não estava cá dentro deste bordel de iníquos que se foi revolvendo na ilusão madrasta do socialismo e lá iam cantando que o futuro era agora e que a reforma agrária é que ia matar a fome aos labregos que ainda acreditavam que nesse país de cornos mansos as coisas alguma vez iriam mudar. Nem foram precisos oito anos, que aos nossos olhos habituados a muito passados, foram apenas horas, para que viessem comer da nossa mão e lamber-nos, não mais as botas de campónios, mas os sapatos italianos, e nos rogassem pelas alminhas das nossas santas mães e pela senhora de Fátima que déssemos a volta àquele lamaçal de idolatras rastejantes, e que por causa dos comunas tiveram de pedir dois empréstimos internacionais, vejam vossas excelências, grunhiam eles, porque os anarcas dos sindicatos das empresas nacionalizadas bloqueiam toda e qualquer tentativa de voltarmos a por as coisas como eram quando vossas excelências mandavam e desmandavam, e quando diziam faça-se a gente fazia e quando diziam desfaça-se nós nem pestanejávamos, de maneiras que vejam lá o que é que podem fazer pela ditosa pátria que vos viu nascer e que vos escorraçou injustamente para os confins dos trópicos cheios de malária que vos come vivos e neves eternas que vos maltratam as artrites reumatoides. E foi então que conferenciámos uns com os outros em murmúrios de anciãos e em línguas que mais ninguém, senão nós entendíamos, e lá lhes fomos fazendo a vontade. Mas pagaram caro a imprudência, porque tal como o elefante velho de décadas e a tartaruga centenária dos mares dos trópicos, não esquecemos a humilhação e lentamente fomos tecendo a teia de aranha, gorda das moscas que caçámos, comprando as empresas que nos extorquíram com o dinheiro das indemnizações vezes cinquenta, mais gigantescas que quando no-las roubaram, e incestuámos nas empresas uns dos outros, e comprámos idiotas úteis afetados e peneirentos que lançámos para a ribalta dos partidos da rebaldaria com manhas de propaganda de feira, partidos que agora financiamos e que foram abrindo caminho dentro da vaca como parasitas que a comem por dentro, movendo influências nas direções-gerais, mercadejando sindicatos com privilégios insustentáveis na casa pública ao mesmo que tempo que os íamos escorraçando das nossas privadas empresas que foram crescendo, sugando da teta da república cada vez mais seca, pagando luvas aos advogados-deputados que legislavam decretos cheios de buracos para depois nos cobrarem pareceres sobre como devemos usar os buracos a nosso favor para evitar pagar os impostos que finalmente cobramos à puta velha dos cincos de outubro em banquetes de asfalto e metal, onde negociatas obscuras cobertas por telhados de betão são engendradas, regadas com bastantes combustíveis e ventiladas do cheiro a pestilência de morte anunciada por geradores eólicos redundantes, privatizando os lucros e nacionalizando a dívida para que seja paga por esta vara de suínos obtusos e mansos que é o povo inútil e ainda nos chamam de campeões nacionais, imagine. E é assim que se fazia, faz e fará circular o dinheiro neste bordel de filhos-da-puta mal-agradecidos para que o pesadelo nunca se acabe, porque nós somos legião e somos como a hidra de Lerna que por mais se cortem as cabeças, mais elas crescem e se multiplicam!



©Alexandre Alves-Rodrigues 2013

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